Porque doenças ‘de antigamente’ vêm ressurgindo ao redor do mundo
08 de abril de 2022Reaparecimento de casos de pólio no mundo ocorre em um momento em que o Brasil tem queda nos níveis de cobertura vacinal contra a doença de 96% em 2012 para 67% em 2021
Por Martha San Juan França — Para o Valor, de São Paulo
É um tema que assusta, principalmente agora que mal estamos saindo de uma pandemia mundial de covid-19, mas é preciso encarar. Doenças que pensávamos ter sido eliminadas no século XX voltaram a nos assombrar.
No mês passado, circulou pelo mundo a notícia de que uma criança de três anos e nove meses havia sido diagnosticada com poliomielite na moderna Israel, país que não tinha sinal da doença desde 1989.
A detecção desse caso (e de outros seis sem sintomas), e o relato também recente de outro caso no Malawi, o primeiro na África em mais de cinco anos, demonstra a possibilidade de reemergência de um mal que se julgava quase controlado.
De fato, o vírus da pólio nunca desapareceu, uma vez que a doença ainda ocorre de forma endêmica em pelo menos dois países - Paquistão e Afeganistão -, o que aumenta o risco de que ele volte a circular em regiões nas quais já havia sido eliminado. O mesmo pode ocorrer com outras doenças consideradas de antigamente, contra as quais a maioria da população costuma ser vacinada em criança - sarampo, coqueluche e tuberculose.
O vírus do sarampo, aliás, voltou a circular em vários países das Américas e da Europa. O Brasil, que chegou a receber da Organização Mundial da Saúde o certificado de eliminação da doença, voltou a registrar surtos nos últimos cinco anos.
Nenhum dos males conhecidos como “doenças da infância” (sarampo, rubéola, caxumba), que eram muito comuns antigamente, está erradicado, apesar de o número de casos e mortes de crianças terem diminuído muito depois que as vacinas se tornaram amplamente disponíveis há décadas.
A vacina contra a coqueluche, combinada com difteria e tétano, faz parte do Programa Ampliado de Imunização da OMS desde 1974. No entanto, os pesquisadores apontam que o número de casos e mortes associados à doença tem aumentado em vários países desenvolvidos.
As razões para a volta ou reemergência das doenças infecciosas que pareciam sob controle ou em declínio são muitas. A escarlatina, por exemplo, que se julgava tratarse de uma “doença medieval”, tem reaparecido nos últimos anos no noroeste da Inglaterra em surtos de inverno. É uma infecção muito contagiosa causada pela bactéria Streptococcus pyogenes. Depois da era dos antibióticos, passou a ser facilmente tratada, reduzindo o contágio. Mas aparentemente a bactéria voltou com mais virulência e aumentou a resistência aos antibióticos, contribuindo para esses surtos que eram comuns há algumas centenas de anos.
A vacinação, ou a falta dela, é um fator importante. O reaparecimento de casos de pólio no mundo ocorre em um momento em que o Brasil tem queda nos níveis de cobertura vacinal contra a doença de 96% em 2012 para 67% em 2021.
Das 15 vacinas que deveriam ser aplicadas até o quarto ano de vida, pelo menos nove alcançaram índices inferiores aos recomendados pela Organização Mundial da Saúde. Esses imunizantes protegem contra pelo menos 17 doenças infecciosas graves, como o sarampo e a coqueluche, ou incapacitantes, como a meningite e a pólio.
A cobertura vacinal da BCG - imunizante que previne formas graves de tuberculose - aplicada em crianças de zero a menores de cinco anos, em 2018, tinha taxa acima de 95%. Foi caindo nos anos seguintes e, em 2021, despencou para 65,6%.
O infectologista Marcos Boulos, médico com quase 50 anos de formação, professor aposentado da Faculdade de Medicina da USP e atual superintendente da Sucen (Superintendência de Controle de Endemias) em São Paulo, lembra o sucesso das campanhas do Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1973 e consolidado na década de 1980. “Graças à estrutura voltada para a universalização das imunizações no país, o programa foi considerado durante muito tempo um exemplo de cobertura vacinal para o mundo”, afirma.
“A vacinação de rotina e de bloqueio para conter surtos, as campanhas de imunização em massa que popularizaram o personagem Zé Gotinha, tiraram de circulação o vírus selvagem da pólio e o da rubéola. Quase eliminaram os vírus do sarampo, difteria e coqueluche, além de reduzir a incidência das meningites bacterianas, entre outras.”
Mas, depois de quase alcançar a cobertura ideal entre 2010 e 2015, os índices de vacinação infantil começaram a cair. Houve uma recuperação temporária em 2018, mas a tendência de queda retornou no ano seguinte e se agravou com a pandemia de covid-19. As explicações são várias. Para os especialistas, o programa acabou sendo vítima do próprio sucesso.
“Manter os níveis elevados de cobertura vacinal da população é um trabalho que exige continuidade”, afirma a médica pediatra Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) que atua há mais de 30 anos na elaboração de campanhas de comunicação e educação em saúde.
“Quando as campanhas diminuem e as pessoas não escutam mais sobre casos de doença, elas param de se importar. Sem contar que temos visto profissionais que nunca viram nenhuma dessas doenças.” Para a vice-presidente da SBIm, a população esqueceu a gravidade de males como a pólio e o sarampo. “Todas as doenças antes consideradas erradicadas no país, mas que não estão erradicadas no mundo, podem voltar se a população não continuar a ser vacinada”, alerta. “É a imunidade coletiva que impede a ocorrência de surtos e epidemias, pois inibe a circulação dos agentes infecciosos e protege tanto a população vacinada quanto aquela que não recebeu os imunizantes.”
O surto de sarampo em Roraima e no Amazonas que depois se espalhou para outros estados brasileiros foi uma das consequências da redução no número de crianças vacinadas. A taxa de cobertura da tríplice viral, que protege da doença e alcançava 96% das crianças em 2015, baixou para 84% em 2017 e abriu caminho para o retorno do vírus vindo da Venezuela.
Em 2018 foram confirmados mais de 10 mil casos da doença. Em 2019 o Brasil perdeu a certificação de “país livre do vírus” com a confirmação de quase 21 mil casos. Em 2020 foram confirmados 8.448 casos, e o último boletim de 2021 noticiou 9.235 casos confirmados.
“As pessoas precisam se informar sobre as vacinas, a informação na minha opinião é a melhor arma contra essas doenças”, diz a funcionária pública Eliana Gonçalves, de 50 anos. Ela conta que teve pólio com três anos e até hoje sofre com as sequelas da doença.
“Na época, a vacina já existia, mas não havia orientação como agora, e minha mãe não sabia que era necessário”, diz. Hoje, ela conta que os sintomas pioraram. Gonçalves sofre da síndrome pós-pólio, desordem neurológica que acomete pessoas que foram infectadas pelo vírus e desenvolveram uma forma aguda da doença.
“As sequelas pioram com a idade”, explica o aposentado Mauro Bufarat, de 65 anos, que teve pólio aos três meses de idade, quando ainda não havia vacina no Brasil. “Passei por muitos tratamentos, hoje tenho que usar bengala para andar. Felizmente sobrevivi, mas muitas pessoas não tiveram a mesma sorte.” Gonçalves e Bufarat participam de campanhas de divulgação sobre a pólio para alertar a população sobre o perigo da doença e a importância da vacinação.
Em dezembro, a Fiocruz e a Secretaria de Vigilância e Saúde do Ministério da Saúde assinaram um protocolo de intenções para implementar o projeto Reconquista das Altas Coberturas Vacinais e reverter a trajetória de queda no cenário agravado pela covid-19, o desconhecimento da gravidade das doenças, os problemas estruturais do país e as fake news que desinformam sobre as vacinas.
O projeto, que ainda não saiu do papel, prevê ações de apoio estratégico ao PNI em conjunto com estados e municípios, busca de soluções para as dificuldades locais e compartilhamento das melhores práticas, além de fortalecimento da integração de dados e de comunicação.
A influência de notícias falsas que circulam nas redes sociais e a ação de grupos contrários à imunização não é tão estruturada no Brasil, mas também confunde a população, como ocorreu e ainda ocorre com a covid-19.
“Na Europa e nos Estados Unidos, a campanha de grupos que não aderem à vacinação causa mais estragos, disseminando notícias inverídicas ou alegando razões religiosas e filosóficas”, afirma o médico infectologista Stefan Ujvari, autor de diversos livros sobre história das epidemias.
“Nos países desenvolvidos, o temor em relação à imunização transcende a questão médica. Está relacionado a questões culturais como ter a sua integridade física comprometida pela inoculação compulsória e ser forçado a submeter a sua liberdade ao bem-estar comum.
Esse temor é aproveitado pelos grupos antivacinas.” Em seus livros, Ujvari frisa que a transmissão de doenças infecciosas se deve a fatores ambientais (desmatamento e mudanças climáticas), sociais (migrações e densidade populacional), biológicos (ciclo dos insetos vetores dos vírus), de saúde pública (estado imunológico da população, eficiência dos sistemas de saúde e dos programas de controle de doenças) e a história de cada lugar (deslocamentos causados por conflitos e guerras ou migrações).
Ele chama a atenção, porém, para uma questão urgente: os desequilíbrios nas relações entre homens, animais e patógenos como responsáveis pelo reaparecimento de velhas enfermidades, mas também pelo aparecimento de novas infecções graves.
“Existem vários exemplos de doenças que foram exportadas de ambientes silvestres para o contato nas cidades”, afirma Ujvari. Este parece ter sido o caso da pandemia do SARS-CoV-2, que até onde se sabe ocorreu após a transmissão do vírus do morcego para humanos, por meio de um animal hospedeiro intermediário, provavelmente um pangolim, em um mercado de Wuhan, na China.
Antes disso, a gripe H1N1, ou influenza tipo A, que afetou grande parte da população mundial entre 2009 e 2010, resultou da combinação de segmentos genéticos do vírus humano da gripe, do vírus da gripe aviária e da gripe suína, que afetaram porcos simultaneamente.
“Outro vírus, o H5N1, que tem como principal reservatório as aves aquáticas migratórias, vira e mexe aparece em aves domésticas”, lembra Ujvari. “Ele ocorreu em humanos que tiveram contato com essas aves, mas o temor maior é o aparecimento de mutações que permitam que seja transmitido de pessoa para pessoa.”
Como o mundo está mais conectado, qualquer novo vírus de regiões remotas tem um risco maior de se espalhar, afirma o infectologista. Foi o que ocorreu com o ebola, que surgiu pela primeira vez em 1976, em surtos simultâneos no Sudão e na República Democrática do Congo e depois em outros países dessa região da África Ocidental, até infectar milhares de pessoas na Guiné, Serra Leoa e Libéria. Acredita-se que isso ocorreu pelo contato direto com morcegos ou com animais que foram infectados pelos morcegos.
O mesmo ocorreu com o HIV, que resultou da passagem de um vírus encontrado em chimpanzés para humanos e foi transmitido via movimentos migratórios de regiões remotas do continente africano para áreas urbanas e dali para o mundo.
No Brasil, surtos como o da febre amarela em 2016-2017 tiveram origem no desmatamento e na expansão das cidades, que fizeram com que as pessoas tivessem contato com os vetores do vírus, mosquitos que normalmente só circulavam no ambiente silvestre e tinham primatas como hospedeiros.
“A conclusão é clara”, diz Ujvari. “Se continuarmos explorando a vida selvagem e destruindo nossos ecossistemas, podemos esperar por um fluxo contínuo de doenças que saltam dos animais para humanos nos próximos anos.”
“Enfermidades não apenas transmitidas por vetores, mas também resultantes da poluição estão sendo afetadas pelas alterações do clima global, o que expõe a saúde de bilhões de pessoas ao redor do mundo a riscos cada vez mais altos”, frisa o médico patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP.
Ele participou do estudo a respeito dos impactos da mudança do clima sobre a saúde nas Américas, lançado no mês passado pela Rede Interamericana de Academia de Ciências (IANAS). E cita como exemplo a dengue, chikunguya e zika, transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.
Para os especialistas, o aumento da população nas grandes cidades, as condições precárias de moradia, a oferta irregular de abastecimento de água e a falta de uma política eficaz de saneamento e de gestão de resíduos sólidos levam à proliferação dos mosquitos e tornam quase impossível a sua eliminação.
Segundo Saldiva, esses fatores são agravados pelas consequências das mudanças climáticas, como incidência maior de chuvas e de secas e as ondas de calor que aumentam a eclosão de ovos dos mosquitos e fazem com que os agentes infecciosos que só existem em regiões tropicais e subtropicais comecem a atingir as regiões temperadas. Além disso, complementa Saldiva, “temos visto cada vez mais chuvas de grande intensidade, que tendem a provocar inundações, acidentes, além de facilitar o aparecimento de doenças como leptospirose, hepatite B e hepatite C.
Há também um aumento no número de mortes e doenças causadas pela poluição ambiental, provocada por uma mistura de alteração do clima, tanto de calor como de baixa umidade do ar, e formação de poluentes”. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas cita como o calor extremo, inundações, agravamento de tempestade, seca e poluição atmosférica podem influenciar o aparecimento de doenças transmitidas por vetores, como a malária e a febre do Nilo.
O relatório também frisa que o calor se tornou mais intenso nas cidades, aumentando o risco de morte para moradores de bairros de baixa renda sem condições adequadas de moradia, de imunossuprimidos e de idosos e crianças.
“Ainda é difícil para muitas pessoas enxergar a mudança do clima como uma ameaça que expõe a saúde de bilhões de pessoas ao redor do mundo a riscos cada vez mais altos”, observa Saldiva. “O problema é que, na prática, esta ameaça é cada vez mais real.”
Todos esses fatores são um lembrete de que não há formas de prever o caminho das doenças, como se pensava, de forma muito otimista, em meados do século passado, em um momento de desenvolvimento de novas tecnologias que pareciam capazes de destruir os vetores de doenças infecciosas.
Medidas de controle, vigilância, vacinação, e políticas sociais e de mitigação das mudanças climáticas continuam a ser muito necessárias. Em seu livro “História das epidemias”, Stefan Ujvari frisa que “a pandemia de covid19 mostrou como somos vulneráveis e impotentes.
E após acalmar a sua tormenta, talvez as nações se unam em acordos internacionais para minimizar o risco de futuras epidemias semelhantes. Talvez nasçam novas condutas rumo a objetivos de um desenvolvimento sustentável do planeta. Minimizar o contato com animais silvestres e um controle rigoroso de higiene e isolamento de criações de animais pode ser, quem sabe, um primeiro passo”.
Você é jornalista? Participe da nossa Sala de Imprensa.
Cadastre-se e receba em primeira mão: informações e conteúdos exclusivos, pesquisas sobre a saúde no Brasil, a atuação das farmácias e as principais novidades do setor, além de dados e imagens para auxiliar na produção de notícias.
Vamos manter os seus dados só enquanto assim o pretender. Ficarão sempre em segurança e a qualquer momento, pode deixar de receber as nossas mensagens ou editar os seus dados.